Os filhos de Cristina (nome fictício) estudam em casa, ensino conhecido com homeschooling. Durante a pandemia de covid-19, a filha mais velha, que tinha seis anos e um diagnóstico recente de autismo, não se adaptou às aulas virtuais. A mãe passou a ensiná-la por conta própria. Não demorou para o irmãozinho, de quatro anos, pedir para participar. A experiência agradou. Mesmo com a volta das aulas presenciais, as crianças permaneceram sob os cuidados pedagógicos da mãe na educação domiciliar.
Cristina ensina português, matemática, história e geografia para os filhos, que hoje têm oito e sete anos, respectivamente. Também dá aula de ciências, na própria casa, para uma turma de crianças que vivem a mesma rotina de estudar fora da escola. Os pais montam uma rede informal de ajuda mútua e compartilham aulas, quando podem. As crianças também frequentam cursos particulares e atividades de contraturno escolar: inglês, dança, música, robótica, esportes.
Ela reconhece que o estilo de vida não é acessível para todos. Cristina tem ensino superior, um diploma de licenciatura e um emprego que lhe permite trabalhar meio período, dois dias por semana. Além dos recursos, ela exalta a disposição e a responsabilidade dos pais.
— Homeschooling não é ‘vai e faz’. Eu tenho que estudar, conhecer o material, preparar cada aula, adaptar [aos filhos]. Peguei a BNCC [Base Nacional Comum Curricular], separei o que eles têm que saber, sigo livros didáticos que vão ano a ano e comparo com os meus sobrinhos que estão na mesma série.
Ela afirma que enquanto puder manter a educação dos filhos em casa e não for “obrigada a parar”, continuará insistindo na escolha.
A família de Cristina é uma das 35 mil que praticam o homeschooling (ou educação domiciliar) no Brasil. O número é uma estimativa da Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned). São cerca de 70 mil estudantes, entre 4 e 17 anos de idade. Segundo a Aned, há praticantes em todos os estados do país.
Apesar dessa adesão, o homeschooling não é legalizado no Brasil. Um julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2018 decidiu que os pais não podem se abster de matricular os filhos na escola e, portanto, não podem educá-los exclusivamente em casa.
O relator do processo, ministro Roberto Barroso, foi voto solitário pela permissão do homeschooling em casos excepcionais. Os demais magistrados seguiram o entendimento de que a educação não é atribuição exclusiva da família — precisa ter a participação do Estado, através da escola.
A maioria do tribunal admitiu, porém, que a prática poderá ser válida se houver a aprovação de uma lei regulamentando a educação domiciliar e criando instrumentos para a verificação de aspectos como a progressão do aprendizado das crianças e o nível de socialização que elas experimentam no dia-a-dia.
O Senado dedicou parte do ano de 2022 a discutir um projeto de lei que faz isso. O PL 1.338/2022 veio da Câmara dos Deputados em maio, após 10 anos de tramitação. Na Comissão de Educação (CE), o senador Flávio Arns (Podemos-PR) foi escolhido relator e deu início a uma série de audiências públicas para embasar um parecer. Até agora já foram realizadas três das seis previstas. Duas delas aconteceram em novembro.
O projeto determina que os estudantes do formato homeschooling sejam matriculados em escolas, que eles não frequentarão, mas que serão as responsáveis por monitorar a evolução do aprendizado. Para isso, os estudantes terão que se submeter a avaliações regulares e os pais terão que enviar relatórios trimestrais das atividades pedagógicas desenvolvidas em casa. As escolas também deverão promover encontros periódicos entre as famílias, para interação e acompanhamento.
O texto exige, ainda, que pelo menos um dos pais tenha ensino superior ou formação profissional tecnológica. Além disso, nenhum dos responsáveis pela criança em homeschooling poderá ter condenações por crimes previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente ou na Lei Maria da Penha, por crimes hediondos, relacionados a drogas ou suscetíveis de internação psiquiátrica.
Flávio Arns não adiantou um prazo para a entrega do relatório e nem uma posição oficial quanto ao projeto, mas já demonstrou simpatia pela reivindicação das famílias que adotam o homeschooling e preocupação com a situação de vulnerabilidade jurídica delas. Em junho, quando a CE aprovou o seu requerimento programando as audiências públicas, ele disse:
— O objetivo é fazer aquilo que as famílias estão aguardando, que é a segurança jurídica e o desejo de trilhar por essa possibilidade de educação domiciliar.
Hoje, as famílias que praticam o homeschooling podem ser denunciadas por abandono intelectual, crime previsto no Código Penal com punição de até um mês de detenção, além de multa. Segundo uma pesquisa feita em 2022 pela Aned, a maioria dessas denúncias (56%) são feitas pela própria escola onde a criança estudava antes de iniciar a educação domiciliar. Quase um quarto são feitas por parentes (13%) ou vizinhos (10%) da família.
Alguns estados aprovaram leis próprias regulamentando o homeschooling, como o Distrito Federal, o Paraná e Santa Catarina. Os defensores da educação domiciliar entendem que, por enquanto, elas servem como instrumentos de conscientização da sociedade quanto à prática. No entanto, sem a regulamentação federal, essas legislações não têm força.
Na primeira audiência da Comissão de Educação, no dia 27 de junho, o presidente da Aned, Ricardo Iene Dias, falou sobre o peso da incerteza legal sobre a compreensão da situação do homeschooling no Brasil.
— A regulamentação iria permitir que todos os atores envolvidos tivessem acesso às informações oficiais sobre homeschooling, como o Legislativo, a academia, as instituições de ensino. É muito difícil fazer uma pesquisa com validação acadêmica, expor os dados. É muito difícil, para nós, falar do sucesso que temos com nossos filhos.
O homeschooling não é bem visto pela comunidade educacional brasileira. A Campanha Nacional pelo Direito à Educação (CNDE), entidade que atua pela ampliação de políticas para o setor, entende que o ensino domiciliar será sempre inconstitucional, independentemente do desenho que um projeto de lei venha a dar. No julgamento de 2018 no STF, essa opinião foi sustentada pelos ministros Ricardo Lewandowski e Luiz Fux.
Para Marcele Frossard, assessora de programa e políticas sociais da CNDE, tratar o homeschooling como uma alternativa legítima para os estudantes é algo que vai contra as escolhas institucionais feitas pelo país ao longo dos anos e que agrava a crise educacional brasileira.
— Autorizar e regulamentar a educação domiciliar colocará em risco o direito à educação como direito humano fundamental e aumentará a desigualdade social e educacional no nosso país, assim como colocará em risco de violências e desproteções milhões de crianças e adolescentes. O problema não está relacionado apenas com o projeto. Entendemos que a modalidade em si é inconstitucional e não há como regulamentar esta lei sem incorrer em violações de diretrizes da educação brasileira e de proteção e garantia de direitos de crianças e adolescentes.
Segundo ela, a eventual aprovação do projeto de lei pelo Congresso poderá ser alvo de uma nova ação no STF.
A coordenadora-geral da CNDE, Andressa Pellanda, falou à Comissão de Educação na segunda audiência pública realizada sobre o tema, em 16 de novembro. Ela rebateu o argumento de que o homeschooling se justifica pela liberdade de escolha, afirmando que esta já está contemplada na possibilidade de que cada família decida em qual escola matricular os filhos.
Segundo explicou Pellanda, a educação precisa estar concentrada no sistema escolar porque ela é um projeto coletivo, e só assim ela estará sujeita aos processos que garantem a sua universalidade.
— É dever do Estado garantir a educação porque ele é o único que é potencialmente capaz de garantir a igualdade de condições e de acesso a direitos. A gestão democrática é um dos princípios fundamentais do direito à educação, e a gente não pode usar a educação domiciliar como alternativa para a educação de qualidade, porque a qualidade tem que ser discutida no bojo da gestão democrática do processo pedagógico.
Outra visão crítica foi apresentada por Mônica Rodrigues Dias Pinto, representante brasileira do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Na audiência do dia 27 de junho, ela expôs a preocupação com a socialização das crianças e adolescentes, e com a falta de oportunidades que os estudantes domiciliares teriam nesse aspecto.
— A escola é o espaço para o desenvolvimento de uma série de competências sociais, de convívio, de aprendizado com a pluralidade e a diversidade. É o único equipamento público que crianças e famílias frequentam de segunda a sexta-feira — lembrou.
Além disso, explicou ela, o aparato escolar dá proteção às crianças através de profissionais qualificados para identificar situações de violência e assédio e para oferecer orientação pedagógica integral.
— Se formos observar os países desenvolvidos, os países que têm bem-estar social, que têm um bom desempenho no Pisa [Programa Internacional de Avaliação de Estudantes], as crianças têm, no mínimo, 12 anos de escolaridade básica. Não se fala em desenvolvimento de crianças e adolescentes sem frequentar a escola — completou.
Fonte: Agência Senado